Defender os povos indígenas contra o Marco Temporal e para além dele
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Fotógrafo: Pedro Ladeira
Nota da Aliança Revolucionária dos Trabalhadores
Com o apoio aberto de setores da base do Governo Lula-Alckmin, no último dia 30 de maio foi à votação e aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 490/2007 que retoma, de forma ainda mais perversa, a tese do Marco Temporal. Agora, como Projeto de Lei nº 2.903/2023, o projeto segue para apreciação do Senado e, posteriormente, para o veto ou sanção do presidente da república.
De nossa parte não ficamos surpresos com a posição de Lula em liberar sua base política no Parlamento para votar em um projeto de lei que fere de morte os povos originários. Ao contrário da maioria das organizações de esquerda, desde as eleições, alertamos que o Governo Lula-Alckmin seria um governo tipicamente burguês e que como tal deveria ser enfrentado e denunciado implacavelmente, pois governaria para o capital, em especial para as suas três principais frações no Brasil (capital financeiro, mineração e agronegócio) e que suas “concessões” aos trabalhadores e aos grupos oprimidos não passariam do campo simbólico.
As negociatas do Governo Lula-Alckmin para liberar a mineração em terras indígenas, na Amazônia, a tentativa de exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, a liberação da base governista para votar na tese do Marco Temporal e para votar no esvaziamento completo do Ministério do Ambiente e do Ministério dos Povos Originários são alguns dos inúmeros fatos que confirmam que nossa caracterização estava correta.
Em síntese, a tese do Marco Temporal consiste no reconhecimento jurídico apenas de Terras Indígenas (TI) que estavam ocupadas pelos povos originários quando da promulgação da Constituição de 1988.
Substanciada por interesses da burguesia ruralista, essa interpretação jurídica sobre a demarcação de terras originárias foi acolhida para discussão no Supremo Tribunal Federal, desde 2009, quando da votação da Corte a respeito da legitimidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Nas palavras do ministro Carlos Ayres Britto, então relator do caso envolvendo a TI Raposa Serra do Sol:
(…) A Nossa Lei Maior trabalho com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam’. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não para aquelas que venham a ocupar. Tampouco as já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 05 de outubro de 1988. (…) É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é de 05 de outubro de 1988, e nenhum outro. (negrito e sublinhado no original).1
Ao condicionar o reconhecimento de terras indígena à ocupação dessas terras quando da promulgação da Constituição de 1988, é explícito que a tese do Marco Temporal ignora que a não-ocupação contínua das terras pelos indígenas trata-se de um migração forçada, isto é, uma expulsão provocada pelos permanentes transcursos de expurgos que as nações originárias sofreram e sofrem, tendo seus territórios continuamente invadidos e vilipendiados pelo setor-primário exportador, formado pelo agronegócio, extrativismo de madeira, mineração legal e ilegal e mais recentemente pelo tráfico de drogas.
É nesse sentido que a tese do Marco Temporal, ressuscitada pelo podre Congresso Nacional e ainda em pauta no “ilibado” e “neutro” Supremo Tribunal Federal, é um ataque frontal à história de luta dos povos indígenas em defesa da preservação de sua cultura e de seus territórios ancestrais.
A demarcação de terras e o limite do direito burguês
A demarcação de terras indígenas no Brasil não foi um direito concedido de livre e espontânea vontade pelas frações do capital, por meio da Constituição de 1988, mas foi sim um direito conquistado pelos povos originários a partir de sua luta histórica e direta contra o extermínio recorrente, contra a aculturação secular desde a colonização, contra as expulsões, etc. Basta lembrar que, antes da demarcação, a política do Estado Brasileiro era de completa assimilação forçada dos povos indígenas mediante a negação de sua cultura, da usurpação de seus territórios e de seu genocídio em caso de resistência. Para isso foi criado o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), contra quem testemunha, entre outras coisas, o Massacre do Paralelo 11, onde mais de 3.500 indígenas dos povos Kabã, Kakin e Mã foram assassinados por envenenamento.
No entanto, a reivindicação dos povos originários para o reconhecimento de seus territórios fora assimilada parcialmente pelo Estado, de tal maneira que a forma jurídica que involucra tal direito – a demarcação – não garante aquilo que é a causa de vida e de morte dos indígenas: a manutenção do caráter comunal da terra mediante o trabalho concreto.
Ao prever que as riquezas existentes em terras indígenas poderiam ser exploradas, desde que haja consulta e consentimento dos povos originários, a Constituição de 1988, via demarcação de terras, abre possibilidade para as atividades econômicas assediarem material, política e coercitivamente lideranças indígenas, com o intuito de forçá-las a aceitarem o uso do território para acumulação de capital. Em outras palavras, em sua aparência fenomênica a demarcação de terras reconhece o direito dos povos indígenas enquanto possuidores legítimos de seus territórios, entretanto em sua essência essa mesma forma jurídica não protege o âmago social e político da posse da terra pelos povos autóctones, pois permite que, mesmo sob posse dos indígenas, tais terras possam adquirir um caráter mercantil por empresas e pelo próprio Estado.
Isso significa que a demarcação não foi e não é um empecilho real para o avanço da acumulação capitalista. É por essa razão que os setores mais sofisticados do agronegócio e da mineração conseguem explorar terras demarcadas, transformando o trabalho concreto dos indígenas, utilizado para a reprodução de sua cultura material e simbólica, em trabalho abstrato, isto é, trabalho estranhado e alienado às cadeias produtivas ligadas ao mercado mundial de bens-primários. Esse é caso, por exemplo, da produção de arroz pelos indígenas xavantes, na Terra Indígena Sangradouro, no Mato Grosso, onde esse povo originário produz 100 toneladas de arroz para o agronegócio da região, com incentivo do governo federal e local. Essa também é a perspectiva da mineradora canadense Potássio do Brasil, acusada de assediar indígenas para que esses concedam o território demarcado para a exploração de silvinita na região de Autazes, no Amazonas.
É por isso que nós, militantes da Aliança Revolucionária dos Trabalhadores, alertamos que a luta contra o Marco Tempo e mesmo pela demarcação de terras, não pode ser um fim em si mesmo. É preciso lutar por uma estratégia que garanta a plena existência dos povos originários.
O destino dos povos indígenas e o socialismo
A permanência do caráter comunal das milenares terras indígenas e do trabalho concreto que esses povos exercem para a reprodução da vida em harmonia com o meio ambiente, somente poderão ser preservados em um sistema cuja centralidade não seja a proteção da propriedade privada dos meios de produção e de sua finalidade que não é outra senão a produção de mercadorias mediante o sobretrabalho. Essa condição coloca, então, em antagonismo a propriedade comunal indígena e a propriedade capitalista sacramentada, protegida, reverenciada pelo Estado Moderno e pelas forças políticas que o administram.
Perante isso, é possível chegar a algumas conclusões. Por um lado, a primeira e a mais explícita dessas conclusões é que o território originário, único lugar capaz de garantir a produção e a reprodução da vida dos povos originários em sua plenitude, é incompatível com a propriedade capitalista e com suas relações sociais de produção. Isso explica o motivo pelo qual, independentemente da forma política que as frações burguesas assumam para administrar o Estado, a questão indígena segue insolúvel. É isso que explica, portanto, a perseguição aberta ou velada dos governos burgueses, não apenas de direita, mas também de esquerda contra os povos autóctones, tal como faz o Governo de Gabriel Boric contra o povo mapuche, no Chile, tal como faz o Governo Lula-Alckmin, no Brasil.
Por outro, o caráter comunal presente nas terras indígenas é completamente coadunável com a luta histórica da classe trabalhadora enquanto força social, ou seja, a constituição do modo de produção comunista, pois em ambas formas sociais não há espaço para as classes sociais, para a propriedade privada dos meios de produção, e também para as relações sociais de produção baseadas no trabalho estranhado. Entre a propriedade comunal indígena e o comunismo, enquanto sistema, não há oposições reais que coloquem um como antagônico ao outro, ao contrário, os territórios comunais indígenas se fundirão no próprio sistema comunista como um sistema planetário único que reserva em si singularidades que já não serão sinônimos de desigualdades e rivalidades.
Portanto, de imediato é preciso assumir as batalhas dos povos indígenas contra o Marco Temporal, suas peleias pela garantia imediata de seus territórios, mas isso não basta e nem será suficiente, pois se o destino da preservação ambiental do planeta passa irremediavelmente pelo destino dos povos originários, por sua vez o destino dos povos originários será decidido, em última instância, pelo destino que terá a luta da classe operária pela edificação de seu projeto histórico, pois essa é a única classe social que realmente tem potencial de ser aliada dos povos indígenas do Brasil e do mundo.
Assim, caminharmos juntos não é apenas possível, mas é uma necessidade para a efetivação de um novo projeto de sociedade – a sociedade comunista.
Abaixo o Marco Temporal!
Em defesa da autodeterminação e autodefesa dos povos originários!
Em defesa do caráter comunal das terras indígenas!
Guerra à mineração em larga escala e ao agronegócio!
Viva a unidade operária-camponesa-indígena!
Notas:
1 STF. Pet. 3388/RR. Voto do Relator. Min. Carlos Ayres Britto. p. 27.