Por Gisele Sifroni e Raphael Furtado
Miragens são efeitos físicos muito curiosos e, eventualmente, perigosos. Observadores incautos, desconhecedores das leis da refração da luz, são levados a crer que certas coisas estão em lugares onde nunca poderiam estar. Isso leva a que acreditem em cidades enormes no meio do deserto e navios flutuando em pleno ar. Miragens no deserto podem iludir viajantes, fazendo com que eles se percam em busca de uma promessa de sombra e água fresca e acabem morrendo sedentos na realidade árida e escaldante das areias.
Nesse artigo abordamos um fenômeno surpreendentemente análogo na política. Assim como a refração desvia os raios de luz, produzindo ilusões perigosas, certas análises com as quais queremos polemizar aqui, se desviam completamente de uma percepção materialista da realidade, apontam caminhos falsos para a nossa classe e a levam a se perder num deserto de ideias falsas.
Com a aproximação de mais um processo eleitoral em nosso país, e embalados pelo sucesso de inúmeras candidaturas saídas das polícias e das FFAA nos últimos pleitos, era mais do que previsível que se repetisse o lançamento de diversas pré-candidaturas de policiais (militares, civis, federais, etc.) para diferentes cargos. A maioria dessas candidaturas se apresentam por partidos de direita mas, os partidos da esquerda reformista e até organizações que se proclamam revolucionárias lançam candidatos que fazem parte do aparato repressivo da burguesia contra a nossa classe. Em alguns casos até encabeçando chapas estaduais. Frente a isso, o debate sobre o caráter histórico da polícia se recoloca mais uma vez entre os trabalhadores organizados.
Advertimos que nesse artigo não apresentaremos nossa posição sobre qual o programa de segurança que a classe trabalhadora deve adotar, tema que será abortado detalhadamente em artigos posteriores.
A experiência nos ensina que uma decisão como essa, de lançar candidatos policiais, em geral, é algo que “desce pronto”, burocraticamente, das direções, sem nenhum tipo debate real com sua base, à qual é dada apenas a tarefa ingrata de tentar justificar, em contorcionismos teóricos, que essa política é correta. Nesse artigo queremos dialogar com a vanguarda e com os militantes de base dessas organizações de esquerda, que não foram consultados sobre essa política e mostrar qual era a verdadeira política dos bolcheviques sobre o tema. É claro que é lícito discordar das posições históricas dos bolcheviques. O que não é lícito é argumentar que uma política tem base nessas posições quando, na verdade, é exatamente o oposto do que Lênin e Trotsky defendiam. Vamos aos fatos, não às miragens que as direções mostram para justificar o injustificável, isto é, o lançamento de candidaturas de agentes “progressistas” da repressão.
Sob a alegação de que os bolcheviques recrutaram e organizavam os soldados do Exército Russo e que tais soldados compuseram os sovietes, essas direções identificam falsamente sujeitos sociais totalmente distintos como os soldados do Exército Russo de 1917, isto é, camponeses recrutados a força e submetidos a castigos físicos, com agentes policiais de carreira, ingressados no aparelho repressivo por meio de concurso público.
Embora tal argumento não se sustente diante de uma análise histórica minimamente rigorosa, esses dirigentes insistem nisso e, como se não fosse absurdo o suficiente, apelam para outras tolices que igualmente não suportam a realidade e que nunca passaram na prova histórica da luta de classes. Vamos a elas.
Na luta de classes, a polícia é disputável?
Quando uma organização de esquerda apoia uma greve da polícia (por melhores condições de trabalho que, nesse caso, são melhores condições de repressão aos trabalhadores) ou lança membros dessas corporações como candidatos, em geral, seus dirigentes se ocupam em criar um enredo no qual supostamente a polícia é disputável. No atual contexto político brasileiro esse argumento se soma ao argumento de que a extrema-direita disputa esse setor e que, portanto, caberia a esquerda também disputá-lo para o campo dos trabalhadores.
A premissa acima é, sem dúvida, uma das falácias mais escandalosas, pois nela está contida a ideia de que a polícia poderia mudar sua natureza social, histórica e política.
A luz da teoria marxista, ou seja, da única teoria revolucionária colocada à prova da luta de classes, a polícia é a guardiã suprema do Estado burguês e do tipo de propriedade que esse Estado protege – a propriedade privada dos meios de produção.
Na definição de Lenin “O exército permanente e a polícia são os principais instrumentos da força do poder de Estado” e não poderiam deixar de sê-los, uma vez que diante da possibilidade de qualquer revolta dos trabalhadores se transformar em sublevação popular e ameaçar a existência da propriedade privada, são essas instituições que darão o tom final da política dominante porque são elas os últimos recursos para a manutenção da ordem burguesa – a correlação de forças que os capitalistas medem mediante o uso da pólvora, tortura e execuções.
Ademais, seja em um regime político democrático liberal (aquele que somos obrigados a escolher o representante burguês que nos governará) ou em um regime político ditatorial-militar, a presença ostensiva da polícia enquanto órgão de “controle social” é permanente. Por isso seus membros, em especial os de baixa patente, são recorrentemente recrutados no seio da classe trabalhadora mediante promessa de carreira e transformados imediatamente em agentes da repressão, convictos ideologicamente de sua função opressora. Por essa razão, Trotsky define a polícia e o policial da seguinte maneira:
“O fato de os agentes de polícia terem sido recrutados em grande parte entre os social-democratas não quer dizer absolutamente nada. Aqui também a existência determina a consciência. O operário que se torna policial a serviço do Estado capitalista é um policial burguês, e não operário. Durante anos, estes policiais tiveram que lutar muito mais contra os operários revolucionários do que contra os estudantes nacional-socialistas (fascistas). E tal escola não passa sem deixar traços. O mais importante, porém, é que todo policial sabe que os governos mudam, mas a polícia fica.” (Leon Trotsky – Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. Grifo nosso).
Essa definição de Trotsky coloca por terra as mentiras daqueles que tentam igualar o trabalho de um policial ao trabalho de um operário, argumento também utilizado pelas burocracias partidárias para justificar a presença de agentes de repressão em suas fileiras ou como porta-vozes partidários em período eleitoral.
Enquanto o trabalho do operário gera riqueza mediante a exploração da qual nasce a acumulação de capital, o emprego do policial consiste em proteger com o uso da força a riqueza roubada dos trabalhadores e acumulada pela burguesia. Qualquer trabalhador consegue facilmente observar que o trabalho de um operário e a função assumida por um policial na sociedade burguesa não são apenas distintos, senão antagônicos. Por é isso é necessário um intenso esforço de mistificação para tentar fazer com que os trabalhadores “desvejam” a realidade que grita a seus olhos, que sentem em sua pele, principalmente se for negra ou indígena.
Em países dependentes como é o caso do Brasil e da América Latina, em seu conjunto, esse antagonismo é mais latente, visto que o caráter repressivo da polícia é potencializado pela condição de superexploração da força de trabalho. Na medida em que o padrão de reprodução do capital submete a classe trabalhadora a condições que não garantem sequer a reprodução de sua força de trabalho, isto é, a submete a jornadas intensivas e a remunerações que são incapazes de garantir o acesso aos meios necessários para reproduzir a própria existência física e espiritual, a necessidade de manutenção da ordem contra qualquer reivindicação popular se torna permanente.
A presença opressora dos agentes de repressão nos bairros pobres são uma constante que se configura como parte da repressão “preventiva” para que os trabalhadores e seus filhos não ousem se rebelar contra o status quo. Além disso, esse aparato repressivo atua para eliminar uma força de trabalho que é dispensável inclusive para compor o exército de reserva. Essa e não outra é a razão das inúmeras ameaças, prisões e assassinatos efetuados por policiais nas periferias das grandes cidades. Não é por acaso que agora tem sido política permanente dos governos colocar policiais para dirigir escolas, como forma de reprimir as lutas da juventude em seu nascedouro.
Soma-se a isso o racismo institucional próprio de um Estado capitalista de ideologia colonizadora que tem na imagem do trabalhador não-branco seu principal inimigo, o inimigo interno que no passado colonial poderia ser um quilombola que ameaçava o sistema senhorial e que no presente é um sujeito revolucionário em potencial, produzido pela permanente miséria a qual está submetido. Não é coincidência que 78% das pessoas assassinadas pela polícia no Brasil são pessoas negras.
Diante disso, esses mesmos setores da esquerda que desejam ficar com o pé em duas canoas, ou seja, atuar no movimento negro periférico e ao mesmo tempo defender as reivindicações de melhores condições de repressão da polícia (travestidas de melhores condições de trabalho), bem como aceitar seus membros na agremiação partidária, usam a alegação nauseabunda de que os policiais que mais morrem são também negros. Ora, esse argumento pode ser aceito pela extrema-direita que tem como porta-voz tipos como Sérgio Camargo, mas não pode ser aceito pela classe trabalhadora. Afinal, o jovem negro torturado e assassinato pela polícia é vítima em todos os sentidos do Estado capitalista e racista, diferente de qualquer policial negro que uma vez que veste a farda e pendura no pescoço o distintivo assume o compromisso de ser agente da repressão desse Estado inclusive contra seus irmãos negros da classe trabalhadora. Mais uma vez estamos com Trotsky, o fato de um policial ser recrutado entre os negros e entre os trabalhadores não quer dizer absolutamente nada e isso não o transforma em um trabalhador como qualquer outro. Mas significa tão somente que o Estado transformou um proletário em seu serviçal para reprimir a classe social da qual esse mesmo policial é oriundo, tal como nos tempos coloniais o senhor de engenho transformava um negro em capitão do mato. Como nos ensina o grande poeta negro Solano Trindade: “negros opressores/ em qualquer parte do mundo/ não são meus irmãos/ Só os negros oprimidos/ escravizados/ em luta por liberdade/ são meus irmãos/ Para estes tenho um poema/ grande como o Nilo”.
E como o Estado burguês consegue a proeza de transformar jovens não-brancos oriundos da classe trabalhadora em máquinas de torturar, prender e matar?
Para que a engrenagem da repressão funcione de acordo com as necessidades da burguesia, é necessário que a estrutura da polícia seja, ou uma estrutura de rígida hierarquia na qual não haja espaço de críticas e organização sindical, tal como é a polícia militar no Brasil e os Carabineros no Chile, ou uma estrutura de cooptação permanente por meio de planos de carreiras, tal como ocorre, por exemplo, nos EUA. Em ambos os casos não há possibilidade de disputar essa instituição por dentro, do mesmo modo que é nula a chance de um policial seguir como tal e defender os interesses dos trabalhadores. Afinal, não nos parece muito sincero defender a classe trabalhadora com palavras e no dia seguinte reprimir manifestações, invadir casas de pobres e executar jovens na periferia. A primeira tarefa de um policial que honestamente deseja defender um programa revolucionário é deixar de ser policial, condição que comprova mais uma vez a incompatibilidade histórica entre ser revolucionário e ser agente de carreira da repressão contrarrevolucionária.
Por isso é ingênuo afirmar que “a direita disputa a polícia”. O que verificamos no decorrer da história é que a direita, enquanto uma das mais tradicionais expressões políticas dos capitalistas, não disputa a polícia, mas sim a domina mais e melhor do que domina qualquer outra instituição do Estado burguês. Nesse caso, não é a polícia que está em disputa, mas sim a esquerda que está a ser disputada para aceitar e acomodar em seu programa e em suas fileiras o braço armado do Estado Burguês.
Se estamos errados, então pedimos, rogamos mesmo, aos defensores da tese da “polícia em disputa por dentro” que nos digam onde Trotsky errou em sua caracterização das polícias, expliquem por que essa política estava errada para a Alemanha ou, se estava correta para Alemanha, por que está errada para o Brasil. Além disso, que nos mostrem qual foi o resultado objetivo dos sucessivos apoios às greves/motins de policiais no Brasil. Houve divisão na base do aparato repressivo? Foram ganhos quadros para a revolução nas fileiras dessas instituições? As polícias, mesmo que minimamente, mudaram seu caráter repressor? Existe algum balanço positivo dessa política para ser apresentado? Para nós, muito pelo contrário, parece que as polícias estão cada vez mais milicianas e que essas greves/motins apenas fortaleceram o bolsonarismo entre as tropas. Se estamos errados, nos mostrem. Mas nos mostrem com fatos, com argumentos tirados da realidade, com ações, não com artigos, entrevistas e discursos de rede social.
Mas, então, não devemos disputar as pessoas que estão no aparato repressivo da burguesia? Essa é outra falácia! Não dissemos isso em momento algum. Todos estão sendo disputados o tempo todo na luta de classes. Se explode, por exemplo, uma luta importante dentro da polícia militar pelo fim dessa instituição, por direitos democráticos, sindicais, etc., é claro que devemos apoiar. Se nossa propaganda atinge um policial da base da PM, devemos conversar pacientemente com esse policial e explicar que, como já dissemos, sua primeira tarefa é sair da polícia, pois como ele poderá avançar na discussão conosco hoje e amanhã nos reprimir?
Observe que não estamos aqui nem falando de oficiais, como existem na polícia militar. Os oficiais das polícias são aqueles que mandam os soldados reprimirem os trabalhadores, os que ordenam invasões de morros, favelas, ocupações urbanas e rurais. A propaganda que os bolcheviques faziam sobre o exército czarista era sobre os soldados CONTRA os generais, coronéis, capitães, etc.
Em resumo: o que a tradição bolchevique ensina é que os revolucionários não reconhecem os policiais como classe trabalhadora. São policiais da burguesia. Os policiais que, por efeito de propaganda socialista ou por outra razão, se aproximem das organizações revolucionárias devem, primeiramente, sair do aparato repressivo. As organizações revolucionárias não devem, nunca, aceitar policiais em suas fileiras e, quanto mais, lançá-los candidatos (como dizia Brecht, “que tempos são em esses em que é necessário explicar o óbvio?”).
Os revolucionários não devem apoiar greves/motins de policiais por melhores condições para nos reprimir, obviamente. Mas devem apoiar lutas, caso ocorram, pela destruição (ainda que parcial) do aparato repressivo, por desmilitarização, democracia interna, etc. Os revolucionários devem fazer propaganda desses pontos, desde que com os devidos cuidados para a sua segurança, sobre a base das polícias, seus familiares, etc. Faz parte da agitação e propaganda obrigatória dos revolucionários para toda a classe trabalhadora a denúncia implacável do caráter das polícias e a necessidade de sua destruição, junto com todo o Estado burguês.
Por fim, voltando à metáfora das miragens e das leis da refração, façamos como os povos originários ao pescar. Ao verem um peixe na água, sabem que o peixe não está onde parece. Conhecendo as leis da natureza, fazem a análise correta, para além da aparência e atiram sua lança, ou sua flecha, no lugar correto.
Não sigamos miragens. É tão verossímil que um revolucionário esteja no comando da polícia quanto que um navio esteja flutuando no ar.
Voltemos a Marx, Lênin e Trotsky, camaradas!